06/02/2020

O DIREITO AO DELÍRIO

“Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.
As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.
Que tal se começarmos a exercer o direito de sonhar?
Que tal se delirarmos um pouquinho?
Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
para imaginar outro mundo possível?
O ar estará limpo de todo veneno
Que não venha dos medos humanos
e das humanas paixões.
E nas ruas os carros serão esmagados pelos cães.
As pessoas não serão dirigidas pelos automóveis
Nem serão programadas pelo computador
Nem serão compradas pelos supermercados
Tampouco serão assistidas pela televisão.
O televisor deixará de ser o membro mais importante da família
E será tratado como um ferro de passar roupas ou
A máquina de lavar roupas.
Será incorporado aos códigos penais o crime de estupidez
Para aqueles que o cometem por viver para ter ou para ganhar
Ao invés de viver para viver simplesmente
Assim como canta o pássaro sem saber que canta
E como brinca a criança sem saber que brinca.
Em nenhum país irão prender os rapazes
Que se neguem a cumprir o serviço militar
Senão aqueles que queiram servi-lo.
Ninguém viverá para trabalhar,
Mas todos nós trabalharemos para viver.
Os economistas não chamarão mais de
Nível de vida o nível de consumo
Nem chamarão de qualidade de vida
a quantidade de coisas.
Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas
Adoram serem cozidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países
Adoram serem invadidos.
Os políticos não acreditarão que os pobres
Adoram comer promessas.
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude.
E ninguém, ninguém levará a sério alguém
Que não seja capaz de rir de si mesmo.
A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes.
E nem por falecimento nem por fortuna
Se tornará o canalha em virtuoso cavalheiro.
A comida não será uma mercadoria,
Nem a comunicação um negócio
Porque a comida e a comunicação
São direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome
Porque ninguém morre de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo
Porque não existirão crianças de rua.
E as crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro
Porque não existirão crianças ricas.
A educação não será um privilégio apenas de quem possa pagá-la.
E a polícia não será a maldição daqueles
que não podem comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas,
condenadas a viverem separadas,
voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, ombro com ombro.
E na Argentina, as loucas da Praça de Maio
Serão um exemplo de saúde mental
Porque elas se negaram a esquecer,
Nesses tempos de amnésia obrigatória.
A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas
Da tábua de Moisés
E o Sexto Mandamento mandará festejar o corpo.
A igreja também proclamará um outro mandamento
Que Deus havia esquecido:
“Amarás a Natureza da qual fazes parte”
Serão reflorestados os desertos do mundo
E os desertos da alma.
Os desesperados serão esperados
E os perdidos serão encontrados
Porque eles são os que se desesperam
Por muito, muito esperar
E eles se perderam por muito, muito procurar.
Seremos compatriotas e contemporâneos
De todos os que tenham vontade de beleza
E vontade de Justiça.
Tenham nascido quando tenham nascido e
Tenham vivido onde tenham vivido
Sem que importe, nenhum pouquinho,
As fronteiras do mapa nem as do tempo.
Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo
O chato privilégio dos deuses.
Mas neste mundo,
Neste mundo trapalhão e fodido,
Seremos capazes de viver cada dia
Como se fosse o primeiro
E cada noite
Como se fosse a última…

Eduardo Hughes Galeano

O SILÊNCIO DA MINHA MENTE REFLETIVA